Releituras


A escrita do literário, como escrita, é passível de modulação pela técnica. Assim, os livros já não são apenas livros: os limites mudaram. Por isso, este espaço, ora escrito. Eis a justificativa, sucinta em excesso, visto que consentida especialmente àqueles mais rigorosos e desconfiados dos motivos alheios. O que segue é uma leitura, do primeiro leitor.
“Sobre o que fala?”: primeira pergunta. “Como fala?”: a pergunta normalmente esquecida. Temos que o problema já se encontra desde o início articulado com o modo de sua percepção, apenas aproximado pela estruturação da escrita – até onde pode a literatura chegar. Qual o problema então? O tempo. Qual o caminho escolhido para aproximação? A morte. Qual problema, ademais, aparece pelo caminho? A memória. Como, então, são articulados na narrativa – se não há estrutura, há, ao menos, estruturação – é a questão que se passa a enfrentar.
O início é dificilmente apreendido. Quem pode determiná-lo, se o jogo é desde o início aberto? A questão, cara leitora, é a confrontação inicial com um tempo perdido a cada vez. Se a compreensão não é clara, o motivo talvez seja o tempo que lhe é tirado, que não lhe é mostrado e, talvez por isso, domine-a no jogo da leitura: você, perdida com o tempo. Mas o tempo é só seu: aqui, o primeiro esquecimento, a primeira brincadeira da memória. “Essas sombras são já filhas do dia. A noite não produz sombras.” (P.C).
O modo não linear, hipertextual, da leitura – não dominada pelo tempo – segue, este é o ponto, até o reconhecimento da morte. A morte organiza, então, o tempo. Trazer a morte para o horizonte da leitura encadeia a narrativa. Mas a morte, cara leitora, não é sua – é o que diz sua memória: você é ainda, desde que começou a ler. Enquanto isso, o tempo não é seu – o que permite acomodar o olhar com o que se passa a ler. O horizonte da leitura não tem a amplitude daquele da verdade. Porque toda escrita é uma farsa: para ser esquecida.
Espera-se que, nesse ponto, você tenha percebido que os autores morrem. A morte, não aquela antecipada pelos corvos, arautos do tempo; o que é a morte? Por que ela não é narrada? Porque ela não é um evento. Ela não é. Então, mesmo que o autor morra, que o leitor morra, não terminaram de dizer o que tinham para dizer. Leitura e escrita são sempre abertas – aqui o contato com cada projeto de vida, com a imortalidade. “Sou imortal?”. Não, você não é. “Não acabou de afirmar a imortalidade?”. Mas não que você seja qualquer coisa. Você não é algo. A vida também não é. O que é lido também não. Por isso, não é fácil; não era para ser.
De onde vêm tantas negações? Da dificuldade de afirmar? O problema levantado nos trouxe, então, ao próprio ato de enunciar, o fiat: origem do mundo – e do seu tempo. Afirmar, de fato, é fácil – quando se seguem as leis do mundo. A dificuldade está em posicionar-se na suspensão dessas leis. Quando não há mais posição. Quando não há eu. Se o eu não se funda sozinho, muito menos o amor. Se uma ação se baseia no amor, então ela não tem nenhum fundamento – lembrai-vos, cristãos, que o mandamento tinha um verbo, não um nome. Antes que se alegue algum exercício retórico, adverte-se já não se tratar, ora, de gramática. A ação autêntica cria sua própria lei. É única: o instante da criação e o eterno retorno do mesmo. O peso de não ocupar uma posição, a responsabilidade é grande. Amar, enfim, como poder-ser-amado. Uma linguagem cujas frases não impliquem sujeito, objeto, mera conformação cristalizada – vontade de potência como princípio organizador da realidade.
Se enfim, fala-se de tempo, morte, memória, amor, é uma fala insuficiente – como uma narrativa ainda não dominada. Fala não é preciso. É preciso agarrar o que acontece.
Acontecimento: eis a resposta, em uma palavra, para a primeira pergunta: “Sobre o que fala?”. Uma resposta talvez impossível, pois não há “o que”.

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